PEDRA DE GUARATIBA: FRAGMENTOS DE MEMÓRIA DOS PESCADORES



Maria das Dores Mendes Pimentel
Socióloga e mestranda em Memória Social e Documento na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Resumo: Esta pesquisa aborda as memórias e narrativas de pescadores no processo de urbanização de Pedra de Guaratiba, bairro localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. O nosso objetivo é analisar a relação entre a memória coletiva e o espaço socializado por este grupo específico e refletir sobre as questões relacionadas ao processo de urbanização desordenado que se efetiva nos subúrbios das grandes metrópoles. A região de Guaratiba está passando por significativas transformações espaciais, ambientais e sócio-culturais nas últimas décadas e a comunidade de pescadores artesanais tem sido particularmente afetada por estas mudanças. Além da observação participante e da análise de documentos, a história oral tem sido ferramenta metodológica fundamental para identificarmos os principais problemas, analisarmos a construção social da memória e compreendermos a utilização deste espaço urbano.
Abstract: This research deals with the process of urbanization in Pedra de Guaratiba, a neighbourhood located in the West of the city of Rio de Janeiro, from the point of view of its fishermen's memories and narratives. It's our objective to analyze the relationship between the collective memory of this group and the space they share. This work aims at reflecting upon the issues related to the disorganized urbanization process that occurs in the outskirts of big metropolis. In the past decades, the area of Guaratiba has undergone significant space, environmental and socio-cultural transformations, which have affected the community of primitive fishermen in particular. Apart from we examine the documents and use of empirical observation, we have used the Oral History methodology as a fundamental tool to investigate the main problems, the social build-up of the memory and understand the use of this urban space.
Palavras-chave: memória e espaço – urbanização – meio-ambiente

Introdução
Este trabalho é fruto da pesquisa que está sendo desenvolvida no mestrado de Memória Social e Documento, da Universidade do Rio de Janeiro, sob orientação da professora doutora Icléia Thiesen Magalhães Costa. Nosso objetivo é analisar as relações entre memória e espaço, segundo as narrativas de pescadores da Pedra de Guaratiba, refletindo sobre as questões relacionadas ao processo de urbanização desta região.
A região de Guaratiba, localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, área tradicionalmente rural, está passando por um processo acelerado de urbanização que tem se agravado muito nos últimos anos. Tal processo vem provocando uma transformação sócio-cultural e ambiental significativa. As praias, antes conhecidas pela beleza e pelo poder medicinal da sua lama, hoje estão visivelmente poluídas; a fauna e a flora nativa está desaparecendo por diversos fatores; há uma explosão demográfica crescente a cada dia, efetivada principalmente por ocupações irregulares. Enfim, o local está sofrendo o impacto de um processo acelerado de urbanização desordenado, que está causando o seu esgotamento e modificando as antigas formas de convivência entre o ser humano e o seu meio.
Um ator social que destacamos neste processo é o pescador. É através da sua narrativa que analisamos as transformações ocorridas neste espaço social e as conseqüências diretas nas relações e existência deste grupo. Ele é um nativo que traz conhecimentos ancestrais, mas todo este processo pode estar causando o desaparecimento deste saber. Suas técnicas e experiências estão se perdendo com estas transformações, que impõem novas formas de relações espaciais e novas formas de lidar com o meio natural.
Os procedimentos metodológicos privilegiam os relatos orais dessa comunidade de destino, a análise dos documentos sobre a história local - registrada por alguns historiadores da região, como Rivadávia Pinto e Benedicto Freitas1, e pesquisadores como Lina Maria Kneip2 - e análise de algumas fotografias aéreas da região entre dois períodos distintos. Pretendemos também entender o papel político e social das principais organizações sociais e da população nativa dentro deste contexto, através da observação participante.
A metodologia fundamenta-se na análise da construção social da memória, assim como nas teorias da memória coletiva, partindo dos pressupostos de Maurice Halbwachs e Walter Benjamin principalmente. Os conceitos de espaço e tempo, além de transformações trazidas pela modernidade, que afetam a arte de narrar, são abordados nesta pesquisa.
Partimos do pressuposto de que a memória é um fenômeno social e coletivo e que tem papel fundamental na formação e coesão de um grupo. As lembranças, a maneira de lembrar, são construídas coletivamente e o passado, constantemente reconstruído, define o olhar do presente para que se possa lidar com situações novas.
Para Halbwachs3, a memória, como produto da racionalidade humana, é mantida através de quadros sociais, e é renovada através dos laços de solidariedade entre os indivíduos. A lembrança pertence e está no indivíduo mas não é puramente individual, ou seja, por mais que o indivíduo tenha uma experiência muito particular, a forma de apreensão, de entendimento e suas mínimas sensações se vinculam afetivamente com a comunidade. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com sua classe social, com a escola, com a profissão, e outras instituições sociais, ou seja, com o seu grupo de convívio e referência.
Esta memória é viva, atual e está no grupo; ela é elaboração da experiência, reconhecimento e reconstrução da lembrança; e cada grupo social tem uma memória em comum, construída coletivamente. Segundo Halbwachs, as transformações de um lugar podem afetar alguns indivíduos e modificar seus hábitos. Para algumas pessoas, uma paisagem transformada, um detalhe removido "fazia parte do seu pequeno universo, e cujas lembranças se ligam a estas imagens, agora apagadas para sempre, sente que toda uma parte de si mesmo está morta..." (HALBWACHS,1990: 137).
Segundo este autor, a noção de tempo também é construída coletivamente, por isso ela é singular para cada grupo. Uma vida em sociedade impõe aos homens um ajuste nos tempos e durações, isto auxilia na distinção de épocas para que o conteúdo recordado seja examinado. A época, o momento em que as relações sociais acontecem, influencia na rememoração daquele indivíduo e do seu grupo, e porque o indivíduo em sociedade é membro de vários grupos, de vários pensamentos sociais, "seu olhar mergulha sucessivamente em vários tempos coletivos" (HALBWACHS, 1990: 128) Um grupo muito amplo tem mais dificuldade em isolar-se em um grupo só, por isso os indivíduos podem pertencer a mais de um grupo. O tempo daquele indivíduo ou grupo passa a ser dividido a partir desses outros interesses também.
Walter Benjamin,4 considerando a obra de Proust, descreve dois tipos de memória: a memória voluntária e a involuntária. A memória voluntária seria o ato espontâneo de lembrar o passado (BENJAMIN,1975: 37). Um desejo individual a serviço da razão, algo que queremos lembrar e que representa a morte do passado e a reconstrução do que é novo. Benjamin trabalha basicamente com o conceito de experiência, afirmando que quando lembramos de algo estamos reconstruindo, repetindo hábitos construídos ao longo do tempo. Quando acontece um fato e algo nos volta a memória sem a nossa vontade é a memória involuntária, que tem certa independência de nós. A memória involuntária seria a memória pura, aquele acontecimento que estaria aparentemente "esquecido" e que num momento onde um fato do presente relembrasse o passado, ele viria a tona. Como sentir o cheiro ou o gosto de algo, que lembrasse um instante do passado.
Para existir esta memória involuntária é preciso acontecer uma simultaneidade, uma experiência parecida, algo que una as duas épocas. Isso, para Benjamin, é uma situação cada vez mais rara em nossa sociedade porque a modernidade faz com que estes momentos simultâneos tornem-se cada vez mais escassos. A paisagem urbana moderna conduz a uma experiência particular de desligamento das estruturas associativas anteriores, nas quais o conhecimento era adquirido através de experiências vividas e de diálogos entre os indivíduos. Walter Benjamin quando aborda o papel do narrador,5 também está denunciando uma mudança social causadora da perda do elo com o passado. Quando ele afirma "...que a arte de narrar está em vias de extinção" (BENJAMIN,1985:197) está preocupado com o rompimento dos elos interpessoais dentro das comunidades. A narração é uma forma artesanal de comunicação que não só transmite, como transforma o acontecido.
O papel do narrador é delegado principalmente ao idoso, afirma Ecléa Bosi,6 ele tem o dom do conselho, seu talento de narrar vem da experiência, sua lição ele extraiu da própria dor e a sua dignidade é de contá-la. Mas a sociedade industrial provocou a perda desta tradição; da arte de narrar e de ouvir. Esta sociedade é maléfica para os idosos, que desvaloriza este grupo social por não participar mais da produção. Bosi afirma que a produção imediatista desqualifica a velhice porque "O velho é alguém que se retrai do seu lugar social e este encolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos" (BOSI, 1994: 41).
Esta autora afirma que o modo de lembrar é tanto individual quanto social e defende o diálogo entre o passado e o presente, pois acredita promover uma valorização do aprendizado. Segundo Bosi, este ser humano moderno não tem mais a idéia de eternidade; tem aversão aos trabalhos longos e pacientes; o que leva a comprar a idéia de que tempo é dinheiro, não pensando assim nas conseqüências que pode acarretar ao meio ambiente.
Estes autores mostram uma preocupação com as mudanças trazidas pela modernidade, principalmente as mudanças espaciais.
2 - Memórias e Narrativas de Pescadores
A prática mostra que uma transformação espacial pode modificar todo um conjunto social, trazendo conseqüências muitas das vezes irreversíveis. Esta é uma realidade facilmente observada em Pedra de Guaratiba e já relatada por alguns pescadores. O espaço, drasticamente modificado, provocou mudanças climáticas, ambientais, econômicas e influenciou, inclusive, as relações de parentesco e identidade.
O Sr. Dudu, 85 anos, morador antigo entrevistado por mim, descreve a paisagem de um tempo remoto, quando o manguezal ainda cobria boa parte da região que hoje está totalmente modificada.

"É o que eu tô dizendo, isso aqui era mangue...quem é que...eu falando assim...todo mundo sabe...eu já panhei caranguejo aqui...já panhei caranguejo aqui, já tirei.... já panhei caranguejo aqui, já tirei casca de ostra disso tudo aqui...no tempo de rapaz...hoje em dia, olha aí...hoje em dia isso aqui tá uma ci...do tempo que eu, que eu alcancei...isso aqui tá uma cidade...dipassa (sic) prá vê isso aí, prá vê si num tem...mangue!..."
Essa transformação mexeu diretamente com um costume dele e com a fonte de sustento de muitas outras pessoas. Sr. Dudu confirma isso quando afirma que
"...muita pa...muito pessoal...olha aqui, muito camarada sustentava a família aí panhando caranguejo..."
As mudanças mais drásticas na organização espacial, vindas com o processo de urbanização, têm acontecido de forma unilateral, ou seja, os projetos não são discutidos com a comunidade mas chegam prontos e são impostos.
"...é...tinha um palacete ali, uma construção, bonita prá chuchu, ali no morro...a pessoa entrava lá dentro até ficava perdida, porque eu nunca vi tanta...tantos cômodos..." (Sr. Dudu)
O palacete ao qual se refere o Sr. Dudu, era um convento que ficava no alto de um morro que foi demolido para aterrar uma grande parte do manguezal, onde foi feito um loteamento hoje chamado de Vila Mar. A renomeação do local e das ruas, mesmo tendo acontecido há cinco décadas atrás, ainda hoje foge da memória do Sr. Dudu7:
"...então isso aqui era tudo mangue...é, mangue...e uma chácara ali...tudo zelado, intão foi aterrado, aonde botaram essa muntueira de nome...nisso aqui...agora é...Raquel, Raquel, vem cá, me dá o nome desse lugar aqui agora, me dá o nome disso aqui..."
Mas o que mais prejudica o pescador, segundo seus próprios relatos, é a transformação da Baía de Sepetiba. O Sr. Dunga, 70 anos, pescador artesanal, denuncia o serviço de dragagem do canal do Porto de Sepetiba como responsável pelo assoreamento da praia.
"O próprio mar secou, né? Tá seco...isso, isso aí que fizeram na... na Baía de Sepetiba, aquilo ali... aquele serviço lá aterrou tudo...aquele serviço lá acabou Sepetiba...aquele serviço em Sepetiba...
- Que serviço o Sr. está falando? Aquele do Porto?
"Do Porto, é...aquilo aterrou o mar todo...prejudicou muito...(...) Cavô, cavando aquela lama, lá...a lama vem tudo prá cá...."
O assoreamento da orla, além de modificar a paisagem e a vegetação, não permite que o pescador saia com sua canoa quando a maré está baixa. Aqueles que usavam motor nas canoas tiveram que abandonar esta prática, voltando a utilizar o remo. Porque além de caro, o motor faz com que barco fique mais pesado e, portanto, mais difícil de ser carregado por cima da lama. Perguntei ao Sr. Dunga se o motor gastava muito combustível mas ele respondeu que
"Não, gasta pouco...mas o motor que é caro...e aqui também tá muito seco...o mar tá muito seco...o motor aqui é ruim por isso... porque a maré tá mais seca do que cheia...o motor é pesado..."
Este fato nos faz retomar a análise de Halbwachs quando aborda a noção de tempo. A organização temporal também é construída coletivamente. Conversando com o Sr. Dunga, percebi que ele tinha muita dificuldade em fornecer as datas dos fatos acontecidos. Suas respostas sempre remetiam a sua idade na época ou a determinados anos passados. Assim também aconteceu com os outros pescadores. Quando eu quis saber sobre a jornada de trabalho, a hora em que se vai pescar e que se volta, percebi que 'hora marcada' tem outra lógica no mundo da pesca artesanal.
- Como era a rotina, saíam de manhã?
"Prá gente num tem dia, não, a gente num tem...vai direto."
- Quando se sabe que tem que ir pro mar?
"Quando o tempo tá bom."
- E quando a maré tá cheia?
"É isso."
- A lua também tem a ver?
"O tempo...".
- Se amanhã melhorar...Mas não tem uma hora certa?
"Pescador num tem hora certa."
- Mas como se organiza prá sair? Um chama o outro, vamos agora...?
"Sabe a hora que vai pescar, marca a hora e vem."
Hoje esta rotina está sendo reelaborada. Sair ou não com o barco depende mais das condições da maré, alta ou baixa, do que das condições climáticas. Ou seja, mesmo que o tempo esteja favorável, se a maré não subiu o suficiente para cobrir toda a lama, fica muito difícil colocar o barco no mar.
Observamos também um processo gradual de degradação da baía de Sepetiba e de todo o seu entorno, causado pela poluição. Jorge Nascimento, 40 anos, outro pescador artesanal entrevistado, denuncia a poluição da Baía.
"...então, a gente costumava tomar banho ali, quando era criança...há 25 anos atrás...a gente pegava peixe ali...ficava brincano lá...tomando banho lá...aquilo lá virou uma fossa..."
Jorge não vê um futuro muito promissor para a Baía de Sepetiba. Mesmo afirmando que seu filho será pescador e que viverá nesta orla, ele profetiza sobre o tempo de vida da baía:
"Ah, acho que...sem exagerar?"
- Sendo realista.
"Uns 30 ano...isso aí em 30 ano, se não fizerem nada, isso aí vai virar uma fossa..."
Mas a principal poluição é feita pelos dejetos químicos industriais. Sr. Tinoco, 68 anos, morador há muitos anos de uma ocupação ao longo do rio Piraquê, é quem descreve a situação.
"...aí...tem muitos peixinhos, coitados, que numa maré dessa aí se não agüentar ele morre...ele morre por causa da poluição, rapaz.....isso aí é...uma química braba que eles tem aí...o peixe...ele tem...tem dia que tu vê o ....tu taqui nos fundos de casa...você tá vendo o peixe passa com a ....o ... sem oxigênio, com a cabecinha de fora...tem peixe que vem quase até na beirada assim...chega no barranco e morre. Eu já peguei aqui, muitas vezes...cheguei a meter o pé, prá botar o peixinho prá dentro d'água...mas ele já tá morto..."
Sr. Tinoco afirma que os resíduos jogados pelo esgoto domiciliar, mesmo com o aumento crescente das ocupações, ainda são insignificantes se comparados com os lançados pelas fábricas.
"...mas é...ó...até que o....esgoto inda num é o problema, porque vê, ali na Pedra...o...o esgoto é jogado ali mermo...tu vê o pessoal ali, tá tomando banho tá as fezes passando por cima d'água...(...) ...Aqui o mal...aqui...o que cabô com esse negócio...é...a química...cê vê, às vezes tem uns caranguejinho, desse caranguejo que fica aqui na beirada, ali ó...eles fica tudo poluído, eles fica abobado...fica coisa...quando a....a maré enche, bota água atrás dele, eles fica ali, coitado, eles num sabem nem se defender! Chega perto deles, eles tá paradinho...o caranguejinho...aquela coisa...pega um caranguejo desse e cozinhar, ele tá com cheiro de óleo ...ele tá com cheiro de...de...querosene...daquele óleo, sei lá...aqueles troço que eles coloca lá no..."
Outro fato observado em Pedra de Guaratiba foi o impacto causado pela introdução da pesca industrial. Esta prática é apontada pelos pescadores artesanais como principal responsável pela escassez do pescado e degradação da baía. A intervenção no meio natural aumentou drasticamente com este tipo de pesca, transformando uma antiga prática e característica da pesca na região. Num dos momentos da entrevista, o Sr. Dudu denuncia:
"...antigamente o peixe era demais aqui na Pedra, agora não tem mais..."
- Por quê?
"Ah, porque o balão! Fizeram a invenção...o balão8 acabou com a criação...já viu falar do balão, né?"
- Já.
"Pode perguntar a Niltinho lá, esse negócio de balão, que ele vai dar umas informação bem milhó...e balão já viu, o balão você mata a criação...não tem mais Sipitiba...e num tem mais aqui...Cadê a muntuera de camarão que tinha todo ano aqui? Num tem, num tem..."
Dessa forma, não só a poluição degrada a Baía. Para os pescadores, o pior mesmo foi a introdução da pesca industrial há algumas décadas. Jorge afirma que ela está acabando, diz sentir que a baía está envelhecendo junto com ele. Ele ainda observa que isso não foi preocupação dos seus pais e avós porque
"...até a época deles, num...num tinha pesca predatória...só depois que veio a pesca predatória prá cá que isso aí começou só a decair..."
(...)
"Ah, isso tem uns 30 ano mais ou menos...30 ano prá cá...trouxeram prá cá e ela acabou..."
Também analisamos nesta pesquisa o papel que o narrador assume nas relações intergeracionais, pois narrar é uma arte que vem se tornando cada dia mais rara. O pescador, principalmente o idoso, por não ser mais ouvido, não tem oportunidade de repassar sua sabedoria, adquirida ao longo dos anos. A perda da arte de narrar e de ouvir teria também alguma relação com a perda da qualidade de vida dessa comunidade? Isto ainda não foi dito pelos pescadores. Mas observamos até agora que a mudança espacial, dos lugares de convivência de alguns grupos, e a saída de alguns pescadores da orla, prejudicou o contato entre as pessoas da mesma geração.
Aos poucos, os antigos moradores do local vão cedendo espaço para os que estão chegando. Quem faz esta declaração é Jorge Nascimento, um dos poucos pescadores que mantém sua propriedade na orla.
"Que a maioria foi tudo...vendendo...entendeu? ...aí continua pescano...(...)...a maioria do...do...dos pescador venderam tudo, né...pras pessoa de fora, né. São pouco os pescador que tem...casa aqui na beira da praia... é muito pouco..."
Ou seja, o pescador aos poucos está sendo afastado do seu antigo meio de convivência. Há um processo de exclusão do espaço, pois ao mesmo tempo em que acontece uma valorização da orla, aqueles que têm poucos recursos irão residir nos locais menos valorizados.
Há uma ocupação ao longo do rio Piraquê que é bastante recente. Fotografias aéreas feitas na década de setenta, existentes nos arquivos do Instituto Pereira Passos e na Secretaria Municipal de Urbanismo, mostram uma paisagem totalmente diferente daquela mostrada em outras fotografias feitas no ano dois mil. Em pouco mais de vinte anos a população aumentou consideravelmente naquela localidade. Conversando com moradores do local, descobrimos que a comunidade, basicamente formada por migrantes nordestinos, abriga também muitas pessoas que antes habitavam o centro da Pedra de Guaratiba, em torno da orla. Maurício, 28 anos, pescador e funcionário público, relata sua história quando eu pergunto porque ele não continuou morando no centro, depois que se casou.
"Não, lá não...lá num tinha espaço mais...porque lá são um terreno com 4 casa...então num tinha como mais...(...) ...eu...eu morava na Capela, aí atualmente...a casa da minha mãe era lá no centro...no centro da.. da...Pedra...ali onde o pessoal chama de Rôdo..."
As comunidades de pescadores artesanais ainda existentes hoje na orla são organizadas por laços de parentescos e não têm muito contato entre si. A orla muito dividida pela edificações construídas, assoreada e poluída, também não oferece facilidade para o convívio intergrupal.
Assim, a modernidade promove mecanismos que além de causar danos maiores à natureza, provoca rupturas na transmissão de conhecimentos modificando relações, tradições, acúmulo de saber, ou seja, afeta a memória social de um grupo, uma instituição baseada no saber-ouvir, o saber-falar e o saber-viver.
3 - Considerações Finais
Essa transformação local faz parte de uma mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo. Esta nova fase, o neoliberalismo, é uma reformulação deste sistema com novos requisitos científicos e tecnológicos essenciais à Terceira Revolução Industrial. Acontece que esta modernização é conservadora e só modifica aquilo que, para aqueles que a idealizam, é importante modificar. Podemos constatar este fenômeno, quando observamos que aos poucos são "apagadas" da memória coletiva certas conquistas, como alguns dos direitos trabalhistas, como o processo de construção social que definiu as noções de cidadania, bem comum, solidariedade, igualdade, direitos sociais; mas por outro lado, preconceitos violentos como racismo, sexismo; pudores e moralismos; e todo tipo de injustiça social são secularmente mantidos por este sistema.
É importante analisar a denúncia de Walter Benjamin quanto às novas formas de informação, principalmente a jornalística, que é caracterizada pela brevidade e pela falta de conexão entre uma notícia e outra, em detrimento da narração "...que é uma das mais antigas formas de comunicação" (BENJAMIN,1975: 37). É com essa pluralidade, com a perda de memória, que os meios de comunicação jogam. A mídia é atualmente uma das principais colaboradoras na criação do imaginário social. Hoje, a televisão particularmente, é a principal representante deste processo. Imagens selecionadas, clipes rápidos, mundo virtual, ícones, símbolos, são subterfúgios dos quais os meios de comunicação de massa lançam mão para inibir o pensamento; para promover a idéia do descartável, provocando um consumismo desenfreado. A razão que se instaurou no ocidente é instrumental, voltada para o luxo, para o poder e a cobiça, condenando a dimensão imaginária a um segundo plano; a razão voltada para a dimensão humana está se perdendo.
Neste sentido, percebemos uma transformação significativa em todos os sentidos nesta comunidade, que desestrutura um todo organizado de forma impositiva. Os pescadores se vêem privados dos seus espaços de trabalho, de convivência, de lazer e perdem com isso uma memória grupal, construída através de várias gerações. A introdução de novos valores e de novas técnicas de pescaria não respeita a preservação do patrimônio histórico e do meio ambiente. Os trabalhadores, desprovidos dos meios de subsistência, submetem-se ao trabalho predatório, comprando a ideologia do lucro rápido. Até mesmo a consciência ecológica, que as instituições afirmam ser necessária neste momento, é imposta, não é discutida. O que promove uma memória forjada.
O nosso estudo de caso nos mostra estes efeitos globais na prática local. Este perverso processo muito em breve irá eliminar todo um grupo e uma comunidade específica. A nossa análise indica mudanças radicais no saber e fazer da pesca local e posteriormente a eliminação de um saber específico.

Fonte (Uno Rio)
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